“Olhando para
fora da parati branca, quadrada, no trânsito congestionado de São Paulo, se dirigia para fora, lia o letreiro de alguma propaganda qualquer, ele era amarelo, ela
tinha sete anos, o pai no volante, ela atrás, voltava da escola e admirava
quatro ou cinco palavras escritas”. – A lembrança mais antiga que tenho com as
letras.
Aprendi a ler na
escola, aprendi a entender o que lia com meu pai, aprendi a oratória com minha
mãe e a amar ler com o curso de Letras e foi esta a função de formação de
leitores que a universidade exerceu em mim.
Na verdade,
narrar como formei a leitora que sou hoje, desde que entrei na universidade,
exige que conte como resolvi entrar... Principalmente porque imagino que seja
possível contar em poucos dedos quem são aqueles alunos que não entraram para
as Letras se não pela literatura.
Prestei o
vestibular para este curso porque amava escrever, amava escrever porque amava
meu pai, ele é escritor e amava ler, por isso me obrigou a ter esse sentimento
tão carinhoso pelo hábito, que inicialmente era conflituoso justamente pela
obrigação. Minha relação com a leitura sempre foi de amor e ódio, sempre!
Inclusive hoje.
Minha infância
se dividiu em duas fases, a dos pais casados e a dos pais separados. Nasci e
cresci em Goiânia, mas fui alfabetizada em São Paulo, onde morei dos quatro aos
sete anos. Essa fase da vida foi casada, aos finais de semana, fora os passeios
comuns, fazíamos, eu, meus pais e minha irmã, passeios cultos e comuns para os
paulistas, visitávamos bienais, feiras do livro, exposições.
Nessa época meu
pai trazia livros para mim e minha irmã que trouxessem lições de vida para o
caráter e a personalidade tão evidente que tínhamos. Outro ponto importante é
que não posso falar de mim sem falar da Vivi, minha mana. Certo dia, meu pai
trouxe para Vivi o livro “Rita, não grita!” e lemos juntos para que ela
compreendesse como era escandalosa. Para mim, papai trouxe “O reizinho mandão”
e também lemos juntos para que eu entendesse que não era bom mandar nas pessoas
como eu mandava aos seis anos de idade. Não adiantou muito para nenhuma das
duas, mas nunca pecamos pelo desconhecimento.
Éramos uma
família como a dos ursos da Cachinhos Dourados, sentávamos à mesa todos os dias
para almoçar, cada um no seu lugar, líamos a oração da refeição em voz alta e
Vivi e eu sempre brigávamos para quem ia ler. Nas minhas memórias o texto era
enorme, mas aos treze anos de idade encontrei este livrinho de orações e me dei
conta de como mudamos nossos pontos de referência de dimensão das coisas,
inclusive dos textos.
Na verdade, após
ter esta percepção, procurei por textos que eu amava pela recordação e julgava
grandes. Encontrei, minúscula, a história do Marreco na cartilha em que me
alfabetizei, uma historinha que lia e relia, que me encantava e me fazia sentir
uma grande leitora, de cinco linhas. Reli meu romance predileto da
pré-adolescência: “O safári dos montros” e me arrependi depois, pois me
desiludi com a (des)complexidade dos enigmas e mistérios do livro.
Quando voltamos
para Goiânia e meus pais se separaram, o único programa literário que tivemos
tempo de fazer foi o dia em que papai me levou com todos os irmãos para a
gibiteca da Praça Cívica, eu, a mais velha, com nove anos.
Como meu pai se
mudou para a mesma rua que a gente já morava, para que mesmo assim pudéssemos
nos ver todos os dias, todo final de semana passávamos com ele no apartamento e
enquanto meus irmãos brincavam no pátio do prédio, lá no quarto andar, na
janela acima, eu lia, resmungando no início, entretida no final, quase todo
domingo, um livro literário, dos quais vez ou outra pulei páginas e me confundi
na hora de contar a história para o doutor pai, que me fazia ler de novo.
Dessas obras de
fim de semana, a que mais marcou tudo que ainda sou, foi o “Sobradinho dos
Pardais”. Como chorei, aos dez, onze anos de idade, ao ler a história sofrida
dos passarinhos que saem da mata e vão para a cidade sofrer. Indiquei a leitura
a quem pude, fiz minha mãe ler e me contar o enredo assim como meu pai fazia
comigo e por fim, ele acabou jogado numa caixa de papelão, perdeu-se em uma das
várias mudanças.
Observei
diversas vezes que meu pai passava horas de frente pro computador escrevendo
qualquer coisa demorada que me impedia de brincar no paint, foi aos 12 anos de idade que de repente me dei conta que ele
era um escritor e que estava a lançar o livro “O Pasto do rebanho”, inspirado
na obra de Fernando Pessoa.
Sempre me
orgulhei de contar a todos que meu pai escreve e guardei a matéria do jornal
comunicando o lançamento de seu primeiro livro, quando uma amiga ia em casa,
orgulhosa, eu mostrava.
Toda vez que eu
fazia alguma coisa errada, minha mãe pegava o livrinho de orações da
Seicho-no-ie, nossa religião, e me colocava para ler em voz alta, para que ela
pudesse ouvir da cozinha. Eu no quarto, lia para ela, que já tinha o livro de
cor, as orações em forma de poema.
Tinha que
recitar, cada vez que li aquele texto da Sutra Sagrada, compreendi algo que
ainda não tinha percebido e não faço a menor ideia de quantas vezes o li, já
que lia nas doenças, nos castigos, nas cerimônias, nos agradecimentos, nos
pedidos e aonde mais o pudesse encaixar. Ainda hoje, quando leio os versos
poéticos daquelas orações, compreendo melhor o ensinamento dessa religião
oriental, na qual cresci. E minha mãe não só formou a boa oradora que sou, mas
também me mostrou que o caminho do texto é o da releitura.
“Assim! Isso é
bom para eu refletir também, se a gente for pensar, toda nossa criação foi pela
leitura: a diversão, os castigos, as recompensas, os problemas e as soluções” –
Comentou o Vinícius, mano rapa de tacho de mãe e pai, depois que li para ele
parte do que já tinha escrito aqui.
Também outro
dia, numa conversa com a Dassa, entendi que os irmãos formam nosso caráter. A
Vivi sempre foi meu ponto de referência, praticamente minha irmã gêmea, um ano
de diferença de idade. Por isso, sempre me esforçava para ler, mesmo que
tivesse dificuldade em deixar os muros, as árvores e a terra, simplesmente
porque ela devorava seus vinte livros por férias e eu não podia ser a
analfabeta da família, pensava, principalmente sendo a mais velha.
Então, quando
entrei pro ensino médio e pensei que fosse estudar sem a sombra da irmã, meu
pai conseguiu fazer com que ela não fizesse a 8ª série, a progrediu direto para
o ensino médio, para que estudássemos juntas e tivéssemos o mesmo bom ensino.
No início relutei em aceitar, por fim, encontrei nela a melhor amiga, a melhor
professora e a irmã mais chata.
Aprendi
gramática com a mana e foi a mana que sempre me repreendeu nas treslouquices e
ininterruptamente me aconselhou e me ouviu. Foi ela quem me incentivou a ler, a
fazer teatro e a ler todos os Harry Potters, por amor e por competição. E por
causa dela também, que para todos passaria de primeira no vestibular, pensei em
escolher um curso que me agradasse, óbvio, e que eu não corresse risco de ficar
para trás. E foram todas as indicações dela que sempre li sem receio, pois ela
sempre soube me indicar boas leituras.
Depois de tanto
raciocínio, de tantas ponderações, de pensar não só nos conceitos infantis,
optei pelo que não via como obrigação para ser minha profissão, pensei que dar
aulas, por mais que fosse um trabalho, nunca me daria sono, sempre me
envolveria... além do que, a leitura, fora da competição com a irmã, já me
agradava e sempre me fez entrar em conflito interno, por que não Letras? Só me
vinham “Sims” à mente.
Quando entrei
para o curso de Letras, ainda era uma adolescente de dezessete anos, não fosse
a carga literária que eu já tinha, teria sido muito mais difícil passar do
primeiro período. Tornei-me adulta dentro da Universidade Federal de Goiás. E
não só pelo tempo, cronologicamente pouco, que estive ali, mas pelo que ela me
construiu de reflexão.
Mil vezes entrei
em sérias crises existenciais por tudo que li no meu curso de graduação dentro
da Letras e nos cursos de Núcleo Livre. A pessoa que entrou nesse curso, em
março de 2007, foi uma menina preconceituosa, homofóbica, com claro
conhecimento de que necessitava muito mais conhecimento do que tinha e que iria
conseguí-lo durante o curso.
A pessoa que se
forma nesse curso e que nunca sairá dele, porque uma vez dentro se torna parte
dele, é uma adulta, com menos preconceitos e que tenta combatê-los, sem
homofobia, com claro conhecimento de que aprendeu muito, mas necessita muito
mais conhecimento do que tem e que, por meio de suas leituras, estará em
constante renovação.
Por mais que eu
tente, não consigo me lembrar das minhas primeiras leituras na universidade,
lembro bastante das discussões de textos de redação de vestibular com a
professora Mary Fátima. Lembro inclusive, que já no segundo ano de faculdade,
quando comecei a lecionar, esta mesma professora se aposentou e na porta de seu
gabinete, deixou uma pilha de textos na porta, no chão e me avisou para que, se
eu quisesse, pegasse alguns, óbvio que peguei.
Dentre os
achados, encontrei umas sessenta cópias de um texto de meados dos anos 80,
sobre as minorias sociais não serem minorias quantitativas e como usei este
texto com meus alunos e promovi debates em sala de aula e internos.
Lembro
claramente dos livros, mas não me lembro do que falavam, eram livros de
introdução à linguística e de introdução a literatura. Recordo nitidamente que
meu primeiro ano foi o mais conteudístico, o que, apesar de saber que não, mais
me parece ter lido e estudado e o ano em que discutia com meu pai, que também
fez Letras, sobre como eu estava sabendo mais teoria que ele. Engraçado que eu
não sabia nada, depois percebi que, na verdade, quanto mais estudamos, mais
necessitamos estudar, mais percebemos que ainda sabemos pouco.
As matérias de
literatura do primeiro ano, com a professora Sueli Regino nos dois períodos,
são as que mais ficaram na memória, mesmo que eu lembre desses dias como se
fossem na infância, posso ouvir sua voz fina e doce dissertar sobre as
influências do Rei Luís XIV, o Rei Sol, na arte... sobre narrativas de moldura e inclusive
contar sobre histórias de Sherazade, falar sobre Racine, o que me faz lembrar o
romance que lemos: Don Ruan, de Molière, que me fez perceber, na época, que eu
tinha um namorado problemático, visto que se identificava com ele
exacerbadamente.
E foram
analogias, complicadas assim, que fiz com quase todas as boas leituras que fiz. Exatamente por isso continuo lendo, quero ver se sempre terei epifanias. O fato
é que a boa leitura normalmente me deprime, por isso digo que ainda mantenho
certa relação de ódio com ela. Qual constantemente provoca mudanças em minha
vida e crises existenciais (o que com os textos que leio dentro do curso de
Letras são muito mais intensas), como quando li “As Moscas”, de Jean-Paul
Sartre e resolvi me eximir de culpa, não funcionou, mas me acrescentou.
As leituras que
esta professora indicava, sempre tinham um pé nas artes cênicas, formada que
era em Belas Artes, lemos também “Édipo Rei”, “Lisístrata” e “Boldas de
Sangue”.
Nos outros anos
do curso me ative a teoria literária, como a maior parte dos alunos, preterindo
o estudo dos romances pela crítica, o que sempre achei um erro, mas o cometia,
sempre com a justificativa das aulas que eu lecionava e das provas que chegavam, enfim, minha muleta sempre foi a correria cotidiana.
Apesar disso,
foi com os textos teóricos da área da educação, durante os estágios, que mais
refleti sobre a vida acadêmica, profissional e pessoal. E com o que hoje leio
nas aulas de fundamentos sócio-históricos da educação, de Bourdieu, Weber,
Marx, Adorno, entro em sérios conflitos, realmente me incomodo, repenso
conceitos construídos durante toda a vida e isso não é nada confortável, ainda
assim procuro por essas reações, porque, inclusive pelo que li deles, o
indivíduo tem que desconfiar do bem-estar.
Logo, a leitura
sempre me acompanhou, sinceramente, as vezes imagino que sempre li, nasci
lendo. Foi por isso também que me vi, como professora, na obrigação de
incentivar este hábito nos meus alunos.
Espero que não
continue pensando assim, espero que amanhã quando eu ler este memorial, eu
perceba quanto falta de detalhes nele, que acrescente outros parágrafos e que
nunca me dê por satisfeita. Atualmente, ainda com a pouca maturidade que tenho,
defendo a leitura como formadora de cada traço que temos em nós, desde a
leitura genética, da leitura de mundo, inconsciente e ora ou outra coletiva à
leitura mais consciente e crítica que possamos chegar.
Afinal, é pela leitura e
combinação de genes que nos encontramos aqui neste mundo, biologicamente, para lermos com os
olhos da alma.
(Parte do memorial anexado em meu TCC, espero que tenham paciência de ler!)
6 comentários:
Eu amo esse texto, é lindíssimo. Traz a memória tds essas passagens das nossas vidas, td sempre juntas... E não sabia que tinha ensinado gramática a voce...
Gostei muito do texto, mas só uma pergunta: Como alguém consegue ser homofóbica no curso de letras?!
Com certeza você seria menos homofóbica ao terminar o curso!
Abraços!
Que coisa boa viver pra ter lido isto, Lílian.
Prosa memorialista é sempre emociante ao envolvidos. A mim me faz ver meu passado de um ângulo nunca antes percebido. Texto de um lirismo gotejante, vivo. Prosa absolutamente poética, vibrante como a alma da autora.
Ah, agora, sim, ficou explicado. Rs. Passei uma madrugada lendo o seu blog e o da Vívian. Fiquei bastante emocionado (e comovido) lendo muitas das coisas que vocês escreveram, em particular quando uma se referia à outra. Fiquei muito admirado com a sua desenvoltura e fluência linguística. Sei, como ex-aluno, que a faculdade de Letras ajuda muita gente a desenvolver a competência tanto de leitura quanto de escrita, no entanto, já cansei de ver gente saindo formada de lá "semianalfabeta" com problemas elementares e sérios para desenvolver um discurso minimamente lógico e coerente. Creio, então, que você seja daquelas que já entrou "sabendo", já tendo "a manha" de como transformar pensamentos, reflexões, emoções, ..., em palavras. O seu "Memorial" é bastante elucidador nesse aspecto. A descrição da sua relação ambígua, talvez até paradoxal, com os livros e a forma como você iniciou o romance com as obras literárias é algo bem singular de se ler. Assim como o é a relação primeira de qualquer leitor que um dia viu o descortinar de um mundo pobre e sem cor em um mundo infinito, de infinitas possibilidades, que é o da literatura. É o deslumbrar de um míope, que sem se saber míope, um dia coloca óculos de grau, sem saber o que esperar, e vê que viveu tanto tempo sem enxergar pelo caminho as coisas pequeninas, as nuances, os contornos, e mais um sem-número de eventos, que agora não consegue deixar de perceber e não consegue deixar de sentir prazer diante deles. Acredito que todos que alcançam prazer na leitura são capazes de recordar o momento da "revelação", da epifania, que foi o instante em que se depararam com um livro mágico, divisor de águas, capaz de colocar-nos de vez na posição de leitor convicto e apaixonado. Sempre me recordarei do meu livro mágico: “Histórias Extraordinárias” do Edgar Allan Poe. Foi a primeira madrugada passada em claro, trocando o sono restaurador, pelo enredo, pelo personagem, pelo desfecho de uma trama. Muitas outras noites assim vieram, e, ainda, continuam vindo. Desejo que venham até o término dos meus dias. E é isso que desejo a meus queridos irmãos, membros da religião chamada literatura: que tenham suas vidas transformadas completamente e que o pesado fardo de arrastarmo-nos por essa existência estranha, nesse estranho mundo, se torne leve e dotado de propósito, desde que nunca se perca o sagrado hábito diário de atravessar ao menos algumas dezenas de páginas de alguma obra que, desde o início dos tempos, estava predestinada a aparecer diante dos seus olhos. É isso, minha cara Lílian, que eu desejo para a sua vida, seja lá que rumo ela for tomar doravante...
que legal seu pai e escritor!não sabia axei que era so aquele texto.de seu aluno fernando.
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